Não tenho mais visto o Sorriso nas minhas subidas ao Centro. Semana passada, passei pelo seu "escritório" convencional e tinha outro assemelhado "despachando" em seu lugar. Tomara que o meu mau agouro não se confirme, mas me palpita que alguma coisa de ruim aconteceu com ele. É que esses dias de inverno intransigente que andaram fazendo não costumam levar ninguém para compadre, ainda mais quem, como ele, anda com pouco pano sobre a fuselagem carnal e tem a imunidade reduzida pela carência de um pouco de tudo que o corpo precisa para seguir adiante.
Desconheço por completo a origem do Sorriso, se nasceu aqui em Santa Maria ou nas redondezas, se ainda tem família ou alguém mais chegado que lhe empreste amparo. Uma triste certeza, no entanto, me assola: ele nunca saberá o aroma de um beijo colhido de doces lábios róseos, num cálido fim de tarde outonal. Jamais entenderá o significado de um abraço apertado de pai, antes de o último ônibus da linha levar a gente para muito longe das paisagens campônias que levemente nos fazem cativos. Essas manifestações de querer bem nenhum tipo de sensibilidade lhe transmitem, mesmo porque são coisas indiferentes ao mutismo de seu mundo caminheiro e madrugador.
Caminha sonolento, com o andar balançado e sem paragem, como a buscar a hora do encontro, marcado já faz tempo na próxima esquina do seu lugarejo povoeiro, que ninguém sabe onde fica. Se os imaginários amigos lá não estiverem, pequena importância fluirá. Um dia vai achá-los, sem pressa, sem anunciar a última nova do dia, sem ter nada o que indagar a quem comparecer à solenidade de entrega do último prato de comida requentada.
Por amor ao lúdico, nem toda a nudez involuntária deve ser censurada. Nem tudo do que é exposto pelo físico invólucro será catalogado como gesto insano, pois nele reside uma gota de afeto. Desconfio até que o Sorriso tenha caído de um desses discos voadores que, de quando em quando, largam pela escada da nave circular um de seus passageiros previamente escolhidos em locais onde a solidariedade aos desvalidos esteja perdendo o seu significado mais sublime, dando lugar ao ódio que destila a sua garapa pelo escuro das alamedas e nas redes sociais.
Talvez este inverno brabo que não passa, cantiga funérea que vai silenciando sonhos, fabricando prantos, o arraste para o seu mar de náufragos. E o nosso olhar, depois disso, guardará daquela imagem risonha, perdida por entre essas ruas de mágicas poesias, não mais o espanto, mas a vontade íntima de também ter sido como o Sorriso, um indigente com os sobrados dentes sempre à mostra, que levava o seu ar de inocência pelas calçadas avoengas da nossa cidade, encarregado pelos deuses sidéricos de distribuir ternura aos necessitados que com ele cruzavam por aí.
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